Democracia falhou em reduzir violência na sociedade


Se a consolidação da democracia em diversas sociedades direciona a resolução de conflitos para instituições legitimamente reconhecidas como de mediação, gerando assim uma pacificação, por que no Brasil a transição democrática não conseguiu reduzir a violência? Esse é o principal questionamento que norteia os trabalhos dos pesquisadores Sérgio Adorno e Marcelo Batista Nery no Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. Eles estiveram em Ribeirão Preto nesta terça (21) para o seminário “Violência, Cidades e Políticas Públicas de Segurança”, promovido pelo Instituto de Estudos Avançados Polo Ribeirão Preto da USP (IEA-RP).

“A expectativa de muitos de nós, cientistas sociais e políticos, era de que à medida que houvesse essa transição e ela caminhasse para uma consolidação da democracia, que muitos dizem ainda não estar concluída, a violência pudesse ser reduzida. Porque, de alguma maneira haveria uma pressão da sociedade para que as políticas de segurança e justiça se transformassem em políticas de prevenção e contenção da violência dentro de marcos legais. Com isso, teríamos uma sociedade mais pacificada internamente. Mas a democracia coexiste com uma explosão de conflitos das mais diferentes espécies”, explica Adorno.

Segundo Adorno, que é coordenador do NEV, houve um crescimento dos crimes em volume, principalmente os violentos, e uma das preocupações das pesquisas é identificar como a Justiça tem lidado com isso. “Fiz uma pesquisa sobre impunidade e acompanhei crimes de 1990 a 1997. Em um pedaço da cidade de São Paulo, acompanhei 344 mil boletins de ocorrência criminal. Desses, somente 6% se transformaram inquérito policial. Lá na frente, menos de 1% era, de fato, punido. Então há um fenômeno de impunidade que precisa ser discutido”, conta.

Crimes em SP

Em seu doutorado, o pesquisador do NEV Marcelo Batista Nery utilizou técnicas pouco comuns em pesquisas na área de sociologia, como a geoestatística, para estudar a variação na taxa de homicídios dolosos na cidade de São Paulo ao longo dos anos 2000, cujo comportamento é peculiar. “A gente observou uma tendência de queda em um certo período e uma estabilização depois. Em 2000, o número de homicídios na cidade, que era cerca de 5 mil, representava  42% dos homicídios no Estado. Em 2016, esse percentual era de 24%”.

O pesquisador levantou alguns aspectos que poderiam interferir direta e indiretamente nesses números, como a ascensão de organizações criminosas, mais especificamente do Primeiro Comando da Capital, o PCC, e as políticas de segurança pública formuladas nesse período, que basicamente envolvem o enfrentamento e o aprisionamento. Neste último caso, Nery destaca que a população carcerária do Estado representa 35% do País.

“Desde 2005, São Paulo é o local com maior taxa de aprisionamento por habitante, mas não é onde há a maior superlotação de presídios, porque os recursos financeiros permitem uma estrutura de presídios de segurança máxima que só existe aqui. É uma estrutura que gastou 24 bilhões de reais só em 2016, um orçamento maior que o da educação, de 10 bilhões, e da saúde, de 22 bilhões”, diz Adorno.

Segundo Marcelo, compreender a violência é um processo bem mais complexo. “Primeiro, você precisa especificar de que violência está falando. Depois, precisa entender o contexto ao qual essa violência está ligada. Por fim, deve considerar também os aspectos que interferem direta ou indiretamente nela. No caso dos homicídios dolosos, é necessário considerar a influência de organizações criminosas, as políticas de segurança pública e também questões sociodemográficas, comuns em cidades maiores”.

Possíveis respostas

Para Adorno, os estudos ainda não chegaram a uma resposta satisfatória sobre as razões pelas quais a violência explodiu. “Tenho uma tese sobre o monopólio estatal da violência. O Brasil não concluiu a tarefa de deter nas mãos do Estado o controle da violência. Isso tem a ver com o modo como o Estado se estruturou no País e como a segurança se estruturou dentro do Estado. É difícil analisar a segurança pública sem considerar os interesses corporativos da polícia, desde deter o monopólio de serviço até o controle da segurança. Uma parte do mercado de segurança privada está nas mãos, senão de policiais diretamente, ex-policiais. E na segurança privada você quer que tenha crimes, para poder oferecer o serviço”. 

A discussão também passou pela questão do tráfico de drogas. Segundo o coordenador do NEV, não há uma relação direta de causalidade entre o tráfico e os homicídios, mas sim uma relação de possível associação entre as práticas de controle de território de organizações criminosas como o PCC e o controle ou não de homicídios. “Aqui no Brasil, a questão do controle de território é fundamental e gera uma guerra mortal da qual a polícia participa, seja por reprimir ou até por estar envolvida. Não acho que esse envolvimento seja total, mas uma pequena parte pode contaminar o processo”.



Adorno também acredita que, embora a política de combate às drogas esteja produzindo homicídios, é preciso ter cautela ao discutir a legalização como forma de evitar essas mortes. “É necessário avaliar o efeito sobre a saúde pública. Pode ser que o mercado tenha um pico e depois se estabilize, mas também pode ser que haja uma expansão. Suponha que parte dos envolvidos sejam os filhos da classe média. Certamente eles irão para clínicas de desintoxicação. Mas boa parte pode ser que venha da periferia e terá que ser atendida pelo SUS. Será que haverá condições de atendimento?”, alerta ele.